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16 de novembro de 2012

Colheita no vale das almas


O sol se estendia imponente no céu. O solo desértico e machucado pelas inúmeras guerras estava manchado de sangue e repleto de corpos. Em meio aquele cortejo de cadáveres, com os olhos vazios e a pele seca em decomposição uma mulher caminhava a passos lentos.
A senhora vestia farrapos, uns trapos cinzas manchados de areia e sujeira. Tinha a pele enrugada e mole, cabelos brancos e desgrenhados, os olhos porem eram intensos, transbordando uma sabedoria antiga e um brilho gentil. Ela Caminhava com dificuldade, os pés descalços e cheios de calos, doíam a cada passo.
Carregava na mão direita um grande saco de pano vazio, que se arrastava preguicosamente na areia. Na outra a idosa portava uma pequena foice. O cabo feito de um osso de corvo a muito morto. A lamina uma coisa frágil, um pedaço de metal enferrujado em forma de meia lua.
Sem pressa, movendo-se a passos lentos ela se aproximou do primeiro corpo, um homem de pele escura, morto com um tiro na cabeça que abrira uma cratera no olho direito. Ela se ajoelhou com dificuldades, seus ossos rangendo de dor por causa da idade.
A velha tocou com ternura e pena no rosto do morto. Sussurrou-lhe uma canção antiga, uma melodia que acalmava, que falava de paz e de descanso. Como uma sabia conhecia os mistérios da vida e da morte. Suas palavras iam alem do que os ouvidos pudessem captar e do a mente pudesse compreender. Ela alcançava diretamente a alma.
Enquanto cantava foi deslizando lentamente a mão do rosto do morto para sua barriga. Seus dedos enrugados e frágeis tocaram o umbigo. Lá ela sentiu a energia pulsante, a semente da vida, ela agarrou aquele poderoso, porem frágil elemento com suas mãos gentis. Lentamente e com cuidado começou a puxá-la para fora.
Ela saiu aos poucos, tremeluzente, tímida. Com um brilho fraco e tênue. A idosa aconchegou a pequena alma entre os dedos, acariciando-lhe com bondade.
Ao ter aquele pequeno ser entre as mãos, sentiu o poder puro e divino que ela emanava. Seu corpo se contorceu com calafrios como sempre acontecia ao tocar diretamente em uma alma. Ela sentiu a sensação familiar, as ondas de emoções e as memórias do morto lhe envolvendo e lhe encobrindo como um manto de sabedoria.
A velha viu como aquela vida veio ao mundo. Uma criança remelenta, nascida em um casebre sujo. A mãe segurando os gritos de dor para não chamar a atenção dos soldados, demônios, que matavam sem piedade qualquer um que encontrassem.
Os anos passaram como folhas de um livro arrastadas pelo vento. O bebe se tornava garoto, uma coisa raquítica, com braços finos e corpo frágil, se banhando nu junto a outras crianças, em um rio de água suja por causa dos dejetos produzidos por uma fabrica qualquer.
O tempo transformara a criança em homem, e a inocência deu lugar a raiva e o rancor. O adulto tinha olhos duros e severos, o corpo marcado pelas cicatrizes adquiridas nos anos de vida sofrida e de guerras. Porem haviam outras feridas, não visíveis, que jamais se cicatrizavam, e doíam, uma dor agonizante.
            A idosa tocou na alma com carinho, lhe sussurrando palavras de conforto. Com uma das mãos pegou sua velha foice. Havia um pequeno fio ligando o espírito ao corpo, era um cordão luminoso, havia sido grosso e resistente no passado, mas agora era frágil e quebradiço como um fio de cabelo velho. A foice encostou no fio, e com um movimento rápido e discreto o cortou.
            A alma tremeluziu em sua mão. Sua luz se intensificou levemente, e ela bruxuleava, saltitante como uma criança. A velha fez uma concha com as mãos, envolvendo e protegendo o espírito. Com cuidado abriu o velho saco e a colocou lá dentro.
            Ela se levantou, cansada. Olhou para o mar de corpos que se estendia a sua frente. Alguns já estavam sendo comidos pelos corvos, mas aquilo não a preocupava, a carne poderia ser comida, mas o espírito permaneceria intacto.
            Sem pressa ela continuou a sua colheita, indo de corpo e corpo, e em todos eles repetia o mesmo processo. Primeiro cantava com ternura para acalmar o pobre espírito. Depois com o máximo de delicadeza possível retirava a alma, a acariciava, e com um corte sutil, cortava-lhe o fio que a prendia ao corpo.
            O trabalho era demorado e exaustivo. Ela o fazia todos os dias, sem descanso, desde a aurora dos tempos. Apesar disso, era algo que fazia com amor. A cada alma velada, ela lhe dava um carinho único e especial, pois todo ser vivente merecia todo seu esmero e cuidado, principalmente nos últimos milênios quando o ódio e a crueldade se disseminavam como um veneno entre os corações humanos.
            O sol cansado foi se esconder, repousar para se reerguer novamente no outro dia. Mas ela não tinha esse direito, continuou a trabalhar sem descanso. A velha senhora sorriu quando a lua surgiu para lhe beijar com sua luz.
            Ao final da noite o saco estava cheio, repleto de almas que se remexiam sem parar. Ela sempre gostara de ver todas ali, juntas no seu velho saco. Quando estavam em corpos humanos eram impuras e cruéis, se separavam umas das outras, achando-se melhores e mais importantes. Mas ali retornavam a sua pureza e humildade. Ali não havia negros e brancos, ricos e pobres, fracos e fortes. Todos eram iguais, e como tais ficavam unidos.
            As horas passaram e a lua começou a se esconder também. Os raios do sol surgiam em pequenos feixes, radiantes. A velha colhia a ultima alma. Era de uma menina, pequenina. Ela cantarolou a musica que se comunica diretamente com a alma. Seus dedos retiraram com todo o cuidado aquela pequenina alma. Tão pequena e tão bela!
            Era de uma luz forte como uma estrela. Humanos assim sempre a impressionavam. Possuiam uma beleza rara. Almas assim pertenciam a pessoas justas, bondosas e cheias de amor. Destinados a fazer grandes cosias e a provocar grandes mudanças.
            A senhora cortou com pena o fio que ligava a alma ao corpo. Uma grande heroína morrera sem ter a chance de espalhar seu esplendor pela terra. Uma messias morrera no anonimato.
            Mas ninguém morria realmente no anonimato. Ela era a guardiã e conhecedora de todos os segredos. As historias que se perdiam nas areias do tempo permaneciam em sua memória. Ela lembrava, ela sabia...
            A velha colocou a alma no saco. O trabalho ali estava concluído. Mas sempre haveriam almas para serem colhidas. Seu trabalho era perpetuo.
A idosa se levantou com os ossos rangendo, e caminhando com dificuldade seguiu seu rumo. Havia muito trabalho a ser feito, os espíritos que colheu deveriam ser mantidas em repouso e em paz, purificadas e limpa de suas cicatrizes adquiridas naquele plano.para renascerem no futuro, em novos corpos. E ela era a única que podia realizar esse trabalho...

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